Registro Patrimônio

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Queijo do Serro: Patrimônio Imaterial da Cultura

Maria Coeli Simões Pires
MEMÓRIA E ARTE DO QUEIJO DO SERRO: O SABER SOBRE A MESA


“O (queijo) artesanal foi muito combatido, mas venceu”.[1]

O queijo do Serro sempre resistiu a muitas crises. A mais severa ocorreu na década de 80 e foi marcada pelo rigor das normas higiênicas federais.

Diante dessas normas, algumas medidas foram tomadas para salvaguardar o processo artesanal de produção queijeira, entre as quais, uma de notável importância: o convênio firmado, em 1986, entre a Fundação Centro Tecnológico de Minas Gerais – CETEC – e a Fundação Nacional Pró–Memória, com a colaboração da Emater – Minas Gerais. Esse convênio visava à elaboração e ao desenvolvimento de um projeto na área da gastronomia cultural - Cultura Material em Minas Gerais -, e estaria voltado para dois produtos tipicamente mineiros: a cachaça e o queijo tipo Minas.

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[1] Maria Eremita de Souza, Presidente da antiga Casa de Cultura do Serro.

 

Na época, o Centro Nacional de Referências Culturais – CNRC, da Fundação Nacional Pró-Memória, procurava compreender a pluralidade cultural brasileira por meio de pesquisas, estudos e registros, entre os quais, Processos Tecnológicos Patrimoniais.

Segundo Mário Edson Andrade, um dos idealizadores do Projeto e pesquisador do CNRC, os processos tecnológicos patrimoniais podem ser compreendidos como o conjunto de conhecimentos técnicos profundamente enraizados no seio de uma comunidade, e que se estabelecem na interrelação entre o fazer, o homem e a natureza. [2]

O projeto Cultura Material em Minas Gerais destacava a importância do queijo Minas na cultura brasileira e buscava, a partir do estudo das técnicas de fabricação, demonstrar as principais características nas regiões produtoras, os aspectos sociais envolvidos e as mudanças observadas no modo de fazer e no produto final. Previa-se a visita a várias regiões e indústrias, entre as quais não se achavam incluídas as de Serro. [3]  

As queijarias do município, contudo, foram pesquisadas logo na primeira fase de execução do projeto, em razão da tradição de suas práticas artesanais e da reputação do seu queijo, conforme consta no primeiro Relatório Parcial Trimestral, datado de 1987.  Este foi o único relatório produzido e encontrado nos arquivos do CETEC/Minas Gerais, mas que traz informações importantes sobre as regiões do queijo artesanal em Minas, naquela época.[4]

O projeto não foi completamente implementado, de modo que a vulnerabilidade das práticas queijeiras artesanais persistiu.

Vale registrar: a realidade poderia ter sido outra, caso o Cultura Material, pensado nos anos de 1980, tivesse avançado nas pesquisas, análises e busca de soluções para a preservação das boas práticas queijeiras artesanais em Minas Gerais.  Ao contrário, o Projeto figura entre as incontáveis iniciativas institucionais bem planejadas, articuladas, iniciadas com entusiasmo e grande potencial de realização, e que não se sustentam, frustrando-se nos primeiros passos. As instituições precisam refletir sobre a relação custo / benefício tão desfavorável e prejudicial às políticas públicas, de modo a superar, pela integração e transversalidade, o binômio: descontinuidade e desperdício.



[2] ANDRADE, Mário Edson. Processos Tecnológicos Patrimoniais ou Da Inventiva Brasileira. Brasília, 1987.

[3] Cultura Materialem Minas Gerais: Queijo Tipo Minas. CETEC, Belo Horizonte, 1986.

[4]  Cultura Materialem Minas Gerais: Queijo Tipo Minas. Primeiro Relatório Parcial. CETEC, Belo Horizonte, abril,1987. (Resumo anexado a este trabalho.)

 

No ano de 2000, o queijo do Serro voltou a ser ameaçado por pressões sanitaristas, em meio a uma crise de extrema gravidade, movida pela tensão saúde pública e práticas artesanais de produção queijeira. A crise instalou-se sob a vigência da Resolução n°. 7, do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal do Ministério da Agricultura, de 28 de novembro de 2000, baseada na Portaria Ministerial nº.574, de 8 de dezembro de 1998, sustentada no Decreto n°. 30.691, de 29 de março de 1952. A aplicação da Resolução e das portarias ministeriais 146/96- MA e 368/97 –MA , relativas a requisitos sanitários mínimos para instalações, equipamentos e utensílios, bem assim às boas práticas de fabricação e às especificações microbiológicas para queijos significava, na prática, a interdição da atividade artesanal pelos órgãos de controle sanitário.

Acirrada pela participação de segmentos acadêmicos, de instituições de pesquisa e de órgãos de proteção à saúde pública, em especial o Ministério Público e os órgãos de proteção ao consumidor, a crise parecia ser insuperável.

À resolução opuseram-se os políticos locais e o movimento dos produtores da região, do segmento integrado à cadeia de comercialização do queijo e das entidades de classe.

Os argumentos em defesa do queijo artesanal, baseados nos problemas econômicos e sociais que a aplicação da resolução traria, eram insuficientes para neutralizar a intervenção no setor. Diante do tumulto gerado pela crise, temia-se o desaparecimento daquela referência secular de identidade e a perda do próprio status social, e crescia a indignação em face da ação perversa da tecnologia e da pressão dos interesse econômicos.

No bojo de uma intensa mobilização da comunidade, do poder público local, de produtores tradicionais, de estudiosos da temática, dos segmentos envolvidos na cadeia do queijo e da Cooperativa de Produtores, buscou-se mudar o eixo da discussão da crise, antes centrada nos aspectos econômicos-sociais, para assentá-la na relação entre cultura e tecnologia. Propôs-se o tratamento da temática do queijo no campo cultural, sem prejuízo da perspectiva do controle da qualidade.

Em face do comando constitucional de proteção aos elementos de identidade, às formas de expressão, aos modos de criar, fazer e viver, que reforça a visão dinâmica e democrática de cultura, iniciou-se campanha paralela de valorização do queijo como elemento cultural, a partir de iniciativa pessoal, logo patrocinada pela Associação dos Amigos do Serro – AASER.

A estratégia era a de salvamento, diante do desastre iminente, agora por imposições do próprio Estado. Estabeleceu-se paralelo da crise do queijo com a do conjunto arquitetônico colonial do Serro nos idos de 1930, para se concluir que, se, diante de ameaça de ruína e desaparecimento das artes e edificações da elitista criação luso-brasileira do período colonial, fora a ação enérgica do poder público responsável pela preservação do patrimônio material, à sombra do IPHAN e da intelectualidade modernista, não poderia agora a atuação do próprio Estado  voltar-se contra a cultura imaterial serrana.

O primeiro passo para invocar a proteção do Estado consistiu na organização de subsídios técnicos e históricos, recolhidos em pesquisa privada de interesse familiar e na análise de processos similares encontrados na literatura estrangeira e de iniciativas em curso no Brasil com vistas à proteção dos saberes e modos de fazer. O objetivo era a apresentação de uma base de argumentação capaz de evidenciar a caracterização do queijo artesanal como elemento cultural, o equívoco das medidas de governo que importavam em controle de qualidade sem preservação do modo tradicional de fazer. Enfim, deveria ficar explicitada a dissintonia das práticas de controle sanitário no Brasil com as políticas mais adequadas desenvolvidas em outros países para produtos artesanais em condições semelhantes.

O objetivo era, enfim, evidenciar o erro da monopolização da discussão pelo viés econômico-social e tecnológico, sem qualquer abertura para o enfoque cultural e interdisciplinar, e, ainda, mostrar a possibilidade de conciliar preservação de identidade com avanço tecnológico.

O tema do queijo artesanal não podia mais ser negligenciado na pauta da Cultura e, à sua vez, a dimensão cultural do processo produtivo do queijo artesanal não poderia ser olvidada na crise, nem tampouco ser mera variável na matriz de análise de qualquer solução. Deveria ocupar o epicentro da abordagem.

A Associação de Amigos do Serro, engajada naquele movimento de defesa do queijo desde a primeira hora, ou, por seus membros, desde outras crises, preparou substancioso arrazoado sobre a matéria[5], encaminhado, em junho e julho de 2001, a diversos órgãos e entidades federais e estaduais da área cultural, a membros do Congresso e da Assembléia Legislativa, a autoridades do Ministério da Agricultura, em especial ao diretor do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal do Ministério da Agricultura e da Reforma Agrária, ao Ministério Público, entre outros. Isso com objetivo de sensibilizá-los para a discussão da crise do queijo com base no seu valor cultural. Com o mesmo propósito, empenhou-se em subsidiar a imprensa por meio de informações sobre o tema. O que era um alerta ganhou repercussão e a pauta da cultura.

O então Secretário de Estado da Cultura de Minas, Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, Conselheiro Consultivo de Cultura da Associação e filho honorário de Serro, assumindo a bandeira da defesa do queijo, solicitou à Presidente da AASER a elaboração de um dossiê, a partir dos elementos já oferecidos, para que, na condição de membro do Conselho do Patrimônio do IPHAN, formulasse proposta de registro do queijo do Serro como bem cultural de caráter imaterial, nos termos do Decreto Federal n°. 3.551, de 4 de agosto de 2000 [6].



[5] Trechos do documento principal foram usados em diferentes pesquisas, dossiês e sítios específicos.

[6] O decreto, acatando recomendações da UNESCO e retomando conceitos de Rodrigo de Andrade ligados às origens do Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional -IPHAN, resgata a filosofia de Aluísio Magalhães voltada para a proteção dos fazeres e saberes populares e disciplina o registro de bens culturais imateriais. Documento anexado a este trabalho.

 

A AASER, na pessoa de sua então presidente, responsável pela elaboração do arrazoado e autora deste livro, dispôs-se, juntamente com a Diretoria Cultural, a prestar o assessoramento necessário para que a idéia pudesse vingar por meio do registro e preparou imediatamente o dossiê contendo os elementos essenciais para a abertura do processo correspondente.

A autora, valendo-se de cumplicidade com a causa da defesa do queijo, de sua experiência no campo da preservação junto ao Conselho Deliberativo do Patrimônio de Belo Horizonte e do conhecimento da temática do tombamento, objeto da sua dissertação de mestrado, desenvolveu o trabalho com o objetivo de identificação do objeto da preservação e documentação. Buscou, então, produzir conhecimento específico sobre o bem, fazer a leitura da literatura disponível, para reunir informações culturais, históricas e sociais básicas destinadas a cumprir, em breve tempo, a primeira etapa de Registro do Processo Artesanal de Produção do Queijo do Serro como Patrimônio Cultural Imaterial – a proposição institucional pela AASER para fins de formalização pelo Conselheiro Ângelo Oswaldo.

O patrimônio cultural, capaz de recuperar e fortalecer os nexos entre distantes temporalidades e diferentes gerações constitui-se tanto de elementos tangíveis da cultura, resultantes do engenho, da inventividade, da obra e da arte do homem, assim como de formas intangíveis dela, como modos de fazer enraizados no quotidiano, celebrações, rituais, folguedos, manifestações literárias, cênicas, lúdicas, plásticas, espaços destinados a práticas culturais coletivas e saberes, cujos valores perpassam o inconsciente coletivo para conferir identidade a um povo ou grupo social. Essa a latitude semântica da expressão.[7]

O instituto do Registro, previsto na Constituição da República (art.216), destina-se à promoção e à proteção do patrimônio cultural no seu plano intangível. Aqui reside a distinção fundamental da espécie em relação ao tombamento, instrumento tradicional de caráter interventivo de grande expressão na história de salvamento e preservação do patrimônio cultural brasileiro. Enquanto este tem incidência sobre bens materiais, móveis e imóveis, o registro é alternativa para proteção de bens imateriais e se faz mediante: identificação da manifestação cultural cujas características essenciais se vinculem a uma tradição e  se mantêm ao longo do tempo; reconhecimento de sua relevância como referência de identidade de um povo; e, por fim, registro oficial do bem, na perspectiva de apoio à continuidade de suas características essenciais historicamente construídas e de sua valorização como referência identitária.

O registro de referências culturais do patrimônio nacional é disciplinado pelo Decreto n.º 3.551, de 4 de agosto de 2000, que institui o registro dos bens culturais de natureza imaterial. A concepção do instituto e a metodologia para a sua aplicação constam do manual de procedimento INRC do Departamento de Identificação e Documentação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — IPHAN de 2000.

Em Minas Gerais, a matéria está contida no Decreto n.º 42.505, de 16 de abril de 2002, sendo a atuação do IEPHA orientada pela metodologia do IPHAN.

O instituto do registro é de aplicação recente no Brasil, embora a preocupação com a temática remonte aos tempos de origem do próprio IPHAN e haja antecedentes de inventário de referências culturais, com o desenvolvimento, em 1995, da experiência-piloto do Inventário de Referências Culturais na cidade de Serro, acompanhado do registro em vídeo da Festa de Nossa Senhora do Rosário,oportunidade em que se buscou atualizar a experiência institucional, na perspectiva da apreensão de sentidos atribuídos pelos moradores ao seu patrimônio. Trabalhava-se, para além da materialidade, já com a dimensão imaterial da cultura.[8]

Não obstante a existência de experiências isoladas de registro, pode-se afirmar que se tem, em realidade, um instituto em construção. Apesar de ainda não estarem sedimentadas a metodologia e a prática registrárias, pode-se tomar como princípios de sua aplicação a lógica da discursividade e da legitimação e a prevalência da dimensão documental, em suas variadas acepções, tanto no resgate da expressão cultural a ser protegida como na produção de conhecimento sobre o tema para a continuidade da tradição. São assim imprescindíveis os estudos históricos e etnográficos e a apreensão dos discursos e dos pontos de vista dos múltiplos atores envolvidos, com o objetivo de fortalecer os laços comunitários a partir das referências protegidas.

Necessária se faz, igualmente, a adoção de salvaguardas pelos institutos de proteção de forma compartilhada com as comunidades envolvidas e os setores oficiais que tenham interface com a matéria. Salvaguardas que levem em conta a vocação dinâmica dos referentes, não só para representação, mas sobretudo para inspirar o diálogo com o tempo.

Em 30 de agosto de 2001, de posse do dossiê sobre a arte queijeira artesanal do Serro, o então Secretário de Estado da Cultura, com base no Decreto Federal número 3.551, de 4 de agosto de 2000,  formalizou o pedido de inscrição do  queijo do Serro em livro especial do IPHAN, como patrimônio imaterial ou intangível da cultura nacional, na tentativa de erigi-lo à condição de referência do Brasil–Colônia como herança dos garimpeiros portugueses que legaram às gerações o saber enraizado na experiência da Metrópole, tão bem acolhido na tradição interiorana de Minas. 

Naquele momento, não se propusera o registro em âmbito estadual, uma vez ainda inexistente nesse plano, regulamentação do instrumento de registro. 

O documento oferecido pela AASER dava ênfase ao tradicional modo de produção do queijo e à ambiência rural do processo, fazendo apelo, também, ao pioneirismo do tombamento do conjunto urbano de Serro como patrimônio nacional. O ofício dirigido ao Conselho de Patrimônio do IPHAN pelo Secretário da Cultura tem o seguinte teor:



[7]José Gonçalves, 1996, p.134. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil, Ed. UFRJ; IPHAN, Rio de Janeiro, 1996. p.8.

[8] Antes, em 1988, O Iphan desenvolveu um projeto chamado Memória e Patrimônio Cultural do Serro, que trabalhava a mesma perspectiva de valorização da cidade como espaço de referências simbólicas e de convivência compartilhado pelos moradores. À época, a mestranda em Sociologia, Célia Aparecida Borges, atuava no projeto e defendeu a dissertação “Amor e conflito – a relação das pessoas com uma cidade histórica”. FAFCH/UFMG, 1988.

 

O Processo de Registro[9] foi instaurado, com a abertura do dossiê de estudos R 06/01. Cumprida a etapa emergencial, com a caracterização do bem, a apresentação de informações básicas contextuais, culturais e históricas, e indicadas as referências essenciais, a fase seguinte seria a de complementação dessas informações e de legitimação do pleito no plano discursivo. Tudo com o propósito de catalisar os atores políticos locais, os segmentos produtivos do queijo, os grupos sociais envolvidos na cultura do queijo e de produção de conhecimento específico a partir de metodologia apropriada — a do inventário nacional de referências culturais, que abrange pesquisa sociológica, histórica, etnográfica, produção de documentação audiovisual. A etapa demandaria um esforço institucional do próprio IPHAN e contaria com o apoio técnico da AASER por meio da consultoria voluntária da então presidente e da diretora de cultura. Ambas, especialistas em preservação e patrimônio e conhecedoras da experiência da Superintendência Regional do IPHAN, de 1995, em Serro, de Inventário de Referências Culturais, buscariam resgatar novos elementos que pudessem subsidiar a nova fase.

Com igual propósito, o IPHAN, por meio do seu Departamento de Identificação e Documentação, solicitou parceria à Secretaria de Estado da Cultura visando à complementação da instrução técnica do dossiê. [10] A parceria, porém, não se efetivou, frustrando a expectativa da AASER de breve ultimação do processo, só retomado pelo IPHAN, em 2006, com a contratação de consultoria externa para estudos complementares, especialmente tendo em vista a ampliação do escopo do processo para alcançar outros queijos artesanais de Minas. Em maio de 2008, o Conselho Consultivo do IPHAN aprovou, por unanimidade, o Registro do Modo Artesanal de Fazer Queijo de Minas nas Regiões do Serro, de Serra da Canastra e do Salitre/Alto Paranaíba, no Livro dos Saberes, tendo como relatora do processo a Conselheira Ângela Gutierrez.

Posteriormente à instauração do processo junto ao IPHAN, Ângelo Oswaldo dos Santos propôs ao Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA) a abertura do processo de reconhecimento do valor cultural do queijo do Serro no plano estadual, com base no Decreto nº 42.505, de 16 de abril de 2002, que, acolhendo as linhas básicas do decreto federal e as recomendações da UNESCO, e inspirado na metodologia do IPHAN, institui formas de registro de bens culturais imateriais ou intangíveis do Estado de Minas Gerais.

O IEPHA instaurou o processo de registro, mediante documento oficial que incorporou a contribuição do dossiê elaborado pela AASER e franqueado aos técnicos daquele Instituto. O processo de registro tramitou na instituição e foi concluído em breve tempo.

O queijo do Serro, em agosto de 2002, teve seu registro aprovado pelo Conselho Curador do IEPHA/Minas Gerais, composto por representantes da sociedade civil e dos órgãos públicos, por 8 dos 12 votos, e foi pioneiramente registrado como bem cultural de natureza imaterial ou intangível de Minas Gerais, inscrito no livro de Registro dos Saberes.[11]

 

 

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Em 15 de novembro de 2002, foi lançado, no Serro, o registro do queijo como patrimônio cultural do Estado, tendo sido o título conferido à comunidade pelo então Secretário de Estado da Cultura, Ângelo Oswaldo dos Santos, e pelo então Presidente do IEPHA, Arquiteto Flávio Carssalade, em solenidade de que participou a autora deste livro, a qual pode testemunhar a entrega da placa alusiva ao Registro ao então Prefeito Municipal.[12]

O processo de registro estadual da técnica queijeira artesanal do Serro, pelo seu pioneirismo e arrojada proposta conceitual, foi indicado para disputar o prêmio Slow Food, na Itália, tendo sido também objeto de exposição em congresso internacional por técnicos do IEPHA, como exemplo da metodologia de proteção de bens culturais imateriais ou intangíveis da cultura.

Tal como o tombamento do conjunto arquitetônico do Serro, realizado pelo IPHAN, em 1938, a medida é sinal da presença do Poder Público na salvaguarda da cultura serrana, a par de corroborar a representatividade do queijo artesanal do Serro na cultura das Minas rurais.



[9] Sobre o Processo de Registro de Patrimônio Cultural veja-se  PIRES, Maria Coeli Simões; artigo: Proteção do Patrimônio Cultural: da monumentalidade aos bens imateriais, publicado na De Jure – Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais nº14, ISSN 1809-8487, na seção Assuntos Gerais/ Doutrina Nacional, nas páginas 79-95, referente a jan./jun. 2010.

[10] Ofício n.306/01/Gab/DID/- Brasília, 12/11/2001. Ofício Sec/Gab/784/01- Minas Gerais.

[11] Outros livros: Celebrações, Formas de Expressão, Lugares e outros que poderão ser abertos, tendo em vista o lato conceito de patrimônio imaterial.

[12] José Monteiro da C. Magalhães.



REGISTRO DO IPHAN

 

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O pioneiro título de patrimônio nacional que o conjunto arquitetônico do Serro ostenta e o selo de patrimônio imaterial do Estado e da Naçãoque patenteia o queijo artesanal do Serro são, também, advertência permanente para uma responsabilidade maior: o compromisso da comunidade local, dos órgãos e entidades de preservação em todos os níveis, dos agentes de cultura e de cada cidadão com a defesa e valorização da cultura serrana, na sua completa expressão, material e imaterial.

Observa-se, no entanto, que o registro, diferentemente do tombamento, não tem caráter de proteção definitiva. Sua permanência é processual e deve ser validada periodicamente. A ruptura com a tradição que constitui objeto de registro justifica a perda da titulação, com a conseqüente manutenção do processo apenas como referência histórica, o que aumenta a responsabilidade dos serranos envolvidos no setor queijeiro no tocante à preservação das técnicas tradicionais de produção.

O certo é que o registro das técnicas artesanais do queijo do Serro no plano estadual e no plano federal como patrimônio dos mineiros e de todos os brasileiros deve significar a perspectiva da revitalização do próprio conjunto arquitetônico tombado e ainda de articulação com Diamantina, cidade Patrimônio da Humanidade. Tal titulação, aliada a uma adequada política de proteção da tradição queijeira, poderá representar a redenção dos depauperados veeiros da economia de Serro e a elevação da reputação do núcleo urbano como referência colonial da identidade mineira e brasileira, expressa numa nova relação do seu conjunto arquitetônico com o Serro rural e seus saberes.

Neste momento, seria providencial que as duas instituições – IEPHA e IPHAN - responsáveis pelo Registro do Queijo Artesanal do Serro e dos queijos Minas Artesanais específicos como Patrimônio Cultural se somassem à iniciativa local de criação do Salão do Queijo, com o objetivo comum de salvaguardar e valorizar a cultura queijeira na região. A parceria atual – entre União, Estado e Município –, que viabiliza a aquisição do Casarão e o projeto de implantação do referido equipamento, deverá se transformar em casamento permanente que estabeleça o endereço da Casa Museu como referência do cuidado com a arte queijeira para a presente e as futuras gerações, de perto e de longe. 

 

Preservação, contudo, deve caminhar junto com salvaguardas e melhorias.

Com o objetivo principal de permitir aos produtores sua permanência na atividade queijeira, o “Programa de Melhoria da Qualidade dos Queijos Tradicionais de Fabricação Artesanal de Minas Gerais", incluído na Cooperação Técnica França/Brasil/Minas Gerais/Secretaria de Estado da Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Minas Gerais – SEAPA/Minas Gerais (PCT Fr/Br/Minas Gerais), foi criado no ano de 2000.

O Programa de Apoio aos Queijos Tradicionais de Fabricação Artesanal de Minas Gerais, no âmbito da Emater e do IMA, destinou-se ao desenvolvimento de ações para preservar a tradição queijeira de séculos e aumentar a qualidade do produto, envolvendo a participação das comunidades, das prefeituras, de empresas,  de universidades e ainda de Missões francesas, tudo sob coordenação da Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento – Seapa. Foi idealizado como ponte entre o bem cultural e o produto econômico, as duas faces do mesmo objeto, para projetar a permanente “vira do queijo” em processo de equilíbrio dessas mesmas faces, siamesas. Sobretudo, buscou despertar os envolvidos para a potencialidade dessa relação, com seus apelos, seus interesses e seus conflitos, sob a perspectiva cultural e material, na expressão de saber, de sabor, de qualidade e de valor econômico.

O Programa de Melhoria representou a continuidade de dois projetos da SEAPA, incorporados, em 1995, ao "Programa do Selo Azul da Agroqualidade" e à "Proposta de Estruturação do Programa de Controle do Queijo Minas". O programa de Melhoria foi desenvolvido em caráter piloto, nas duas regiões queijeiras tradicionais mais conhecidas do Estado, a do Serro e a da Canastra, e, ainda, na região da Serra do Salitre. As três regiões representavam aproximadamente 1.100 produtores responsáveis pela produção mensal de 550 toneladas de queijo.

A iniciativa contou com uma base de estudos desenvolvidos no curso das  atividades ocorridas entre 1992 e 1999 no âmbito do PCT Fr/Br/Minas Gerais, principalmente na forma de estágios e envio de missões de estudos à França, compostas por servidores da SEAPA e produtores.

A metodologia adotada baseava-se na articulação de setores interessados para discussão, planejamento e viabilização de ações orientadas por objetivos comuns, no bojo de um projeto único gerenciado por produtores, com o apoio de técnicos qualificados, especialmente para elaboração de documentos, propostas e estudos necessários à negociação de soluções com o poder público.         

As principais ferramentas utilizadas para a mudança de opinião e atitude foram as formas de intercâmbio entre produtores e técnicos dos dois países (estágios, viagens de estudos, missões de especialistas). A forte mobilização do segmento queijeiro e a ampla plataforma criada, envolvendo entidades representativas dos produtores brasileiros, prefeituras municipais, Assembléia Legislativa do Estado, universidades, estudiosos, entidades culturais, as Secretarias de Estado de Agricultura e de Cultura, o Ministério Público Estadual, a Cooperação francesa e entidades representativas dos produtores franceses, permitiram, em tempo relativamente curto, resultados significativos.

Atribuem-se aos esforços dessa mobilização algumas soluções normativas, embora seja necessário advertir que a legislação deve ser paulatinamente aperfeiçoada para adequação às peculiaridades do objeto e superação de dificuldades burocráticas e de exigências excessivas. A legislação há de transformar-se em arsenal de defesa dos processos artesanais de produção, sem potencializar a guerra cultura-saúde.

A aprovação e a regulamentação da Lei nº 14.185, de 2002, específica para o queijo artesanal fabricado com leite cru diretamente em fazendas, apresenta-se como resultado do Programa, prometendo ao pequeno produtor a ruptura com a clandestinidade e a adaptação às modernas exigências do mercado consumidor, “conciliando tradição e segurança alimentar”.[13]

Nesse contexto, e ao influxo dos ideais de defesa do queijo do Serro alimentado por pioneiros do movimento, surge a Associação dos Produtores Artesanais do Queijo do Serro – APAQS – entidade civil sem fins lucrativos, criada em janeiro de 2003, com sede no município de Serro.

Nos termos de seu estatuto, a entidade destina-se à defesa do processo artesanal de produção do queijo, segundo a tradição queijeira de séculos.

Encontra-se em seus propósitos a organização do segmento produtor, com vistas à sua conscientização, à articulação de medidas de colaboração voltadas para a melhoria dos processos produtivos e à superação das dificuldades coletivas do setor, nos moldes de experiências internacionais, notadamente as francesas, aventadas como parâmetros.

Como objetivo imediato, figura o apoio aos produtores para adequação das queijarias às exigências estabelecidas pela legislação sanitária.

A entidade congrega 80 associados, mas seu trabalho está voltado para todo o segmento. Esteve presente de forma muito expressiva na estratégica de viabilização das certificações das queijarias, orientando os interessados e articulando-se com as instâncias oficiais, apoiando iniciativas de capacitação e parcerias institucionais.

Foi ainda responsável pela propositura do processo de Certificação de Indicação Geográfica, medida de relevância para o queijo da região delimitada como território queijeiro do Serro. Em 2011, a marca do queijo do Serro foi registrada junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI –, para os produtos originários da região delimitada como produtora. 

Hoje, constata-se, contudo, que, a despeito da Lei 14.185, pequenos produtores tem-se mantido na clandestinidade, eis que muitos não acatam as exigências relativas às instalações e aos utensílios, devido a limitações financeiras ou ao zelo em manter elementos essenciais ao modo artesanal de fazer o queijo Minas.



[13]www.milknet.com.br/noticias.547.html

Exclui-se a referência a tombamento em razão da impropriedade de seu uso e da inadequada identificação da narrativa do “processo de reconhecimento do queijo como bem imaterial”.