Entrevista - Feiz Nagib Bahmed
QUESTIONÁRIO: PERFIL DO ENTREVISTADO
Data: Belo Horizonte, 26/05/2003.
Nome Completo: Feiz Nagib Bahmed
Idade: 76 anos.
Formação e profissão: Sou formado em administração de empresas e em contabilidade. Fui promotor interino, durante três anos, em Serro, enquanto trabalhei lá. O Serro não ganhava um promotor porque não havia estrada, nem casa para alugar. Então, o que eles faziam? Deixavam a família em BH e iam para lá e, muitas vezes, ficavam ausentes. Então o Dr. César começou a me nomear como promotor ad – hoc, ou seja, em alguns processos. Como eu era professor de português dos filhos dele, ele me conhecia bem e parecia gostar do meu estilo, o que me deu uma chance de ingressar no mundo do Direito. O que eu aprendi nesses três anos de promotoria é que a teoria no campo do Direito é uma coisa maravilhosa, mas o seu exercício é diferente.
O Sr. nasceu no Serro. A casa onde o Sr. nasceu e/ou viveu ainda existe? Ainda pertence à sua família? Quais pessoas da sua família ainda moram no Serro? Nasci em 1926 (...). A casa ainda existe e, agora, da ultima vez que eu estive em Serro, há três anos, eu soube que nela funciona um órgão da APAE. Ela fica na rua Direita, que tem o nome do meu pai Nagib Bahmed, em frente a uma casa grande que era um clube. A casa não é mais da nossa família. Pela distância, nós chegamos à conclusão, como nenhum de nós morava mais no Serro, de que a conservação de sobrados no Serro é muito difícil porque todos eles são feitos de pau a pique e, ao cabo de cinco anos, precisam de reforma.
Sobre a sua infância no Serro, quais são as lembranças mais fortes, não necessariamente ligadas ao queijo, boas e ruins? As minhas lembranças mais fortes são as que eu vivi numa época em que o Serro, como quase todas as cidades, possuía quintais muito extensos, onde a gente fazia um grande parque de brincadeiras. Era uma época em que as ruas eram muito tranqüilas. O Serro tinha um perfil rural muito forte e tinha neste aspecto liderança bem consolidada e a cidade era muito vocacionada para a religião. Então de que eu brincava? De fazendeiro, com cavalo de pau e outras fantasias. As laranjas da terra, aquelas azedas que só serviam para fazer doces, eram meus bois. Fazia o carrinho de rolimã, jogava meu futebol, isto escondido do meu pai, que achava o jogo muito violento. Por influência da religião, fazia meu altar, celebrava missa e tinha uma profunda vontade de ser padre.
O Sr. tem lembranças relacionadas com o queijo no Serro? Quais? Pode relatar algum fato ou caso interessante? Algum ditado?
O lazer normal de uma pessoa nascida no Serro era visitar fazendas, porque elas eram habitadas por aquelas pessoas de maiores recursos, e toda a produção se concentrava nas fazendas. Mas o tempo levou os fazendeiros a se afastarem de suas fazendas, e estas deixaram de ser residência, enquanto perdiam, também, muita mão- de- obra em função da motorização.
Eu sou alguém que sempre teve grande curiosidade sobre tudo, do que, de certa forma, eu me arrependo um pouco, porque eu acabei sabendo um pouco de tudo, quando, na verdade, eu queria saber tudo de um pouco. Então, quando eu ia às fazendas, observava todo o seu funcionamento, razão pela qual eu tenho na memória o processo de produção do antigo queijo do Serro. E há o queijo do Serro de hoje e o queijo do Serro de antigamente. Não houve no Serro uma mudança grande, mas o queijo do Serro hoje não representa aquele queijo antigo e famoso, cujo nome o Serro, erroneamente, deixou de registrar e que passou a ser válido para fazendas de outros municípios. Quando retornei a São Paulo, depois de lá ter morado por dez anos, eu tive uma grande decepção, ao passar por uma casa que vendia queijos e perceber que ali não havia queijo mineiro. Eu cumpriria, juntamente com outras pessoas, um programa de trabalho. Ao nos dirigir à periferia de São Paulo, passando por uma rua sem asfalto, nós vimos uma galinha e ficamos encantados com a galinha. Paramos o carro. Durante dez anos, a gente só via galinha dentro dos refrigeradores, de pernas para cima. Aquela cena me remetia para lembranças das fazendas. Então, a lembrança que eu tenho do queijo do Serro é a daquele tempo antigo. O queijo sempre teve e tem um mercado muito precário, isto porque o leite é um dos alimentos mais baratos no país e talvez no mundo inteiro. No nordeste, o leite é dado. O nordestino prefere o leite de cabra. Por lá, nós nunca passamos por uma casa, por mais pobre que fosse, que não tivesse uma cabra amarrada. O nordestino do interior passa fome, mas a fome é epidêmica e não endêmica porque o leite de cabra misturado com frutos e frutas é alimento muito forte. José de Castro, no livro “A Geografia da Fome”, diz que a umbuzada, mistura de umbu com o leite de cabra, tem as mesmas qualidades nutritivas do mel com a tâmara, alimento com o qual o beduíno atravessa o deserto. O grande problema do nordestino é a água.
Bem, mas nós falávamos do leite. No tempo em que eu estava lá, em 1954, Fortaleza tinha um rebanho de gado holandês melhor do que o daqui do sul, mas não tinha como comercializar o leite, porque o leite in natura não tinha mercado. Então, era preciso transformar o leite em outro produto: em manteiga, mas, para isso, faltava tecnologia, e não havia estradas para escoamento da produção. Já o Serro, a trancos e barrancos, atolando o caminhão na estrada, vendia esse queijo sem grande lucratividade. As extensões de terra eram muito grandes, e o capim, embora fosse fraco, era o capim meloso, que é o melhor capim para fabricação do queijo. Eles mudaram agora para um tal de braquiária que, do ponto de vista de criação de gado, é melhor, mas, do ponto de vista do sabor do queijo, é pior. O capim meloso enche de flores, é maravilhoso e, quando você pega nele, ele deixa gordura na sua mão. Ele contém muita proteína. Aconteceu outro fato: o Serro sempre criou gado Zebu, que não dava tanto leite e, também, era modesto, digamos assim, na reprodução. Ocorre que os produtores começaram a trazer esse gado holandês que não deve ter nem metade da gordura que o Zebu tem. Isso já prejudicou muito o gosto do queijo do Serro. Mas o principal elemento é o clima: o gado agradece mais ao clima do que à pastagem.
Hoje, nós temos dois queijos em Serro, um que é feito artesanalmente e continua sendo feito pelos fazendeiros, com uma diferença: antes, usava-se a fôrma de madeira e hoje, a fôrma de plástico. Por certo, a fôrma de plástico tem furinhos por onde o soro vai saindo até que fique dessorado ou sólido. Ora, no passado, aquilo era feito com as mãos, que têm 36º celsius, e o calor da mão cozia um pouco a massa do queijo, o que não acontece com a fôrma de plástico.
Veio, então, o meu sogro que, enquanto foi prefeito, instalou, em Serro, uma fábrica de laticínios, que hoje é da Cooperativa. Esta produz um queijo também chamado queijo do Serro, mas que tem uma diferença notável em relação ao queijo artesanal. O queijo é feito com leite pasteurizado. Ora, um dos grandes problemas para se fazer a União Européia foi a diretriz restritiva aos países interessados na sua formação para que só produzissem queijos pasteurizados. A França não aderia, em hipótese alguma, à restrição, que foi superada. Com relação ao coalho, lembro-me que os produtores dos queijos mais saborosos feitos em Serro não usavam o coalho industrializado, mas, parece-me, o suco gástrico tirado do estômago do tatu. O velho Alfredo colocava uma gota desse coalho no leite e obtinha um queijo maravilhoso.
Até que idade o Sr. viveu no Serro? Em que trabalhou até ir embora de lá?
Eu saí, provisoriamente, de Serro e fiquei seis anos em Diamantina para os estudos. Depois, vim para BH e estudei no Colégio Marconi. Enquanto esperava que começasse o curso de jornalismo, eu voltei para o Serro, com o propósito de retornar para BH. Meu pai, que foi praticamente um dos fundadores do Banco Real, antigamente chamado Banco da Lavoura de Minas Gerais, deu-me a oportunidade de trabalhar no Banco, na minha cidade, de onde eu seria, depois, transferido para BH. Com a transferência, eu trabalharia no banco, durante 6 horas, e faria meu curso, em outro horário, mas acabou que a minha mulher, que tinha, então, 16 anos, me tirou do rumo. (risos).
Quais eram as atividades da sua família? Chegaram a ter fazenda? Produziram queijo?
O meu pai nasceu em 1883, no Líbano, e estudou jornalismo e línguas na Universidade Americana de Beirute. Ele falava inglês fluentemente, o que ajudou muito na sua adaptação no Serro. Lá, ele encontrou um cidadão que falava inglês, o avô da minha mulher. Ele fora para o Serro, não para ser comerciante, mas para atuar como jornalista. Ele tinha feito um contrato com sete jornais do Egito, da Síria, do Líbano, para mandar notícias da América. O Serro era uma Uberlândia naquele tempo, uma grande cidade, com muito dinheiro e seu território ia até a Bahia. Ele teve, também, oportunidade de ir para Buenos Aires, mas um amigo do Rio de Janeiro fez com que ele desistisse.
As pessoas no Oriente achavam que, em Minas Gerais, a gente achava ouro na rua, punha no bolso e voltava rico. Ele desfez todas essas fantasias. Meu pai fez uma campanha para que os árabes não adotassem nomes brasileiros.
Mas, depois de algum tempo, ele decidiu ser comerciante, porque o trabalho para os jornais não tinha grande valor econômico. Foi comerciante durante uma década. Ele se enriqueceu de forma que pode construir a usina hidroelétrica no Serro, e muitas pessoas aderiram ao empreendimento, mas o pessimismo mineiro fez com que elas desistissem e ele comprou quase todas as ações e ficou com 98.8% delas e iluminou o Serro inteiro. Nessa época, por volta de 1917, só 23% das cidades brasileiras tinham energia elétrica, e o Serro era uma delas. Depois, ele fez um contrato com a Prefeitura e, em 1949, a Prefeitura propôs a ele a compra. Antes que se iniciassem as negociações, meu pai chamou o grupo e transmitiu aos seus integrantes a seguinte orientação: “não aguardem que a comissão da Prefeitura faça qualquer proposta, tomem primeiro a palavra e digam a eles que, gratíssimo que sou por ter sido recebido aqui com carinho e respeito por essa gente serrana, não desejo um só centavo por todo o acervo da companhia. Devem informar à Prefeitura que todo o ativo está sendo a ela transferido e que não existe um só centavo de passivo”. Ou seja, de dívida.
Antes que meu pai tomasse essa atitude, consultou minha mãe e todos os filhos, pois o valor deste bem superava os valores disponíveis de seu partimônio, somando mais de 50% de seus bens.
Ele fundou, em Serro, a primeira agência bancária. Foi, também, por vários anos, inspetor do Colégio do Serro.
Durante uma década, ele comercializava artigos finos. Meu pai sempre freqüentou o Rio, onde, certa vez, ele adquiriu um pano de casimira inglesa e trouxe para a confecção de um terno no Serro. Uma semana depois, o alfaiate foi à casa dele e disse: “Olha, o pano não deu para a manga, então eu procurei em toda a região e não achei desse pano que você comprou”. Daí em diante, ele iniciou o negócio.
Meu pai nunca comercializou queijo: você não conhece um árabe fazendeiro, eram todos citadinos. Ele casou-se com uma brasileira, de família tradicional do Serro, mas minha mãe não morava em fazenda, ela residia junto com as irmãs na cidade.
Qual era o tipo de relação que sua família tinha com o queijo, comerciantes e consumidores? Meu pai nunca vendia queijos, ele vendia só artigos finos, mas nós sempre tínhamos o queijo em casa.
Como era um bom queijo? O queijo era um produto caro? O queijo tinha 95% da produção exportada para Belo Horizonte, em balaios de taquara cheios de palha de milho e, como as estradas de terra eram ruins, costumava, em época de chuva, apodrecer toda a carga do caminhão. A higiene não devia ser tão boa. Eu me recordo que eu era criança e alguém da área da saúde foi ao Serro obrigar todo mundo a colocar telas de metal bem fininhas para que não entrassem moscas nos quartos de queijos. Como sempre, houve uma revolta dos fazendeiros porque achavam que aquilo era um absurdo, uma imposição hitleriana.
O queijo tem subprodutos: ao fazer o queijo, procede-se à dessora da massa, e, do soro, tira-se, ainda, muita gordura. As antigas desnatadeiras tiravam a gordura e faziam a manteiga. Então, sobrava aquela água do queijo que tinha muita vitamina e caía no chiqueiro para os porcos. Por outro lado, o queijo manuseado ficava com uma forma desconexa, e usava-se o ralo para dar forma, colhendo-se a rala e daquilo fazia-se o queijo de rala.
A verdade era que os produtos alimentícios, no meu tempo de criança, não tinham valor econômico, eram bens de consumo. A minha mulher contava-me que a sua avó mandava-lhe, semanalmente, um burro com dois balaios cheios de doces, carnes, toucinho e miúdos. Então, se alguém quisesse vender aquilo, não contava nem com transporte, nem com mercado.
Como consumidores, consumiam sempre o queijo do mesmo produtor? Todos gostavam de queijo em casa? Sua mãe fazia receitas árabes com o queijo do Serro? Quais? Havia outro tipo de queijo comercializado no Serro? Como o queijo era mais consumido, no café, em receitas ou com doces?
Não havia ninguém que não gostasse de queijo, e vou lhe dizer que acho que isso é algo que permanece. Eu tive um cunhado que distribuía queijo do Serro aqui, em grande quantidade ou em feiras, e, como o poder aquisitivo era variado e alguns consumidores de queijo tinham poder aquisitivo muito baixo, ele vendia até fração do queijo. O camarada, no dia que recebia o salário, pedia “me vê meio queijo”. Mas o normal era o pobre comprar um quarto de queijo. Então, eu dizia a ele: “Snar, todas essa grandes empresas de laticínios têm um marketing para vender para um segmento econômico de seu interesse”. Como ele tinha quase hegemonia na compra do queijo lá, ele deveria mandar fazer fôrmas pequetitas, porque, com essas formas, ele poderia vender queijos a bom preço para pessoas de faixa sócioeconômica baixa. Nunca fizeram essas formas diferenciadas para o comércio de queijo. Agora eles estão fazendo.
Minha mãe não aprendeu receitas árabes. Lá em casa, ela só fazia o quibe mesmo.
E o queijo do Serro era consumido com café e com doces de frutas. Eu aprendi a comer queijo de uma forma deliciosa no sul de Minas. Pega-se um prato, e nele coloca-se cachaça bem forte e põe fogo, joga-se o queijo e deixa até a chama apagar. O queijo fica com o gosto e o cheiro da cachaça. É bom demais.
Esse negócio de que comer o queijo artesanal faz mal para saúde é cisma de alguns. Eu tinha um cunhado que era muito cismado com isso, e, então, ele só comia queijo do Serro assado. Havia, também, um outro produto, que custava cinco ou seis vezes mais do que o queijo, o requeijão moreno. Aquilo era feito num tacho imenso, e gastava-se até 40 litros de leite para fazer um grande requeijão.
Existem histórias libanesas sobre queijo? Sabe da lenda sobre o mercador árabe que descobriu o queijo?
Não me lembro de nenhuma lenda, mas já ouvi falar que o queijo nasceu no mundo árabe.
A família de sua esposa fazia queijos? O Sr. freqüentou a fazenda?
O pai dela era um grande fazendeiro e tinha 600 alqueires de terra. Íamos muito à fazenda do meu sogro e lá eu tentava, também, fazer queijos. Fiz muitos queijos, mas só por brincadeira.
O Sr. ainda consome o queijo do Serro? Onde compra? O queijo mudou muito? De que forma?
Claro! Embora já tenha experimentado muitos queijos, aqui em casa, eu não passo sem o queijo do Serro. De vez em quando, minha mulher traz outro queijo Minas e eu digo que não é a mesma coisa.
Há um supermercado aqui ao lado, e, quando de sua inauguração, eu disse ao gerente: “você vai comprar o queijo do Serro”. Hoje o supermercado não passa sem o produto.
O Sr. acha que o queijo é um símbolo da cidade? Isso é bom?
O Serro é uma cidade pobre, muito pobre. Na verdade, terminada a mineração, quando o ouro morreu no fundo da terra, há duzentos anos, eles vêm fazendo esse queijo que é vítima do processo econômico. O que acontece é que o queijo, embora, na origem, tenha um custo reduzido, com o transporte e com os atravessadores, torna-se um produto caro. Ele sai do Serro a R$2,00 e chega aqui no supermercado por R$ 10,00. De certa forma, ele deixa no Serro um valor muito pequeno. Eu conheço muitos fazendeiros que, em certas épocas, não tiram leite; eles preferem deixar o bezerro mamar tudo e ficar forte para vender depois. A maior produção que existe no Serro é a do queijo, mas, infelizmente, esse queijo que aqui chega por um preço acessível à classe média alta, não está ao alcance da classe média baixa, para uso diário. O queijo é um certo filé que se compra, e o queijo do Serro concorre com os internacionais, que são de qualidade e de preço alto. Eu acho que há uma superprodução de leite e um consenso em torno da idéia de que o leite não pode subir de preço, na medida em que é o alimento do pobre e da criança, o que não é verdade. O leite corresponde a 20% apenas do queijo industrializado, e o preço do leite dita o preço do queijo.
O Serro, que agora produz outros queijos, como o prato, por exemplo, não concorre com os produtores de queijos industrializados famosos. O indivíduo que compra o queijo prato vai levar o da Nestlé, e não, o do Serro, por falta de um marketing adequado.
Você já viu alguma fazenda assim: Joaquim José Fazenda LTDA? Não, e toda grande fábrica se faz por sociedade, enquanto o fazendeiro quer ser autônomo, quer ser sozinho. A fazenda é de Joaquim, porque aquilo é o pequeno reino dele, ele é o juiz, o delegado, o homem mais inteligente e ele não abre mão disso. A industrialização depende de grandes capitais e de publicidade ampla.
Como o Sr. compara o queijo do Serro com outros tipos de queijo?
Eu acho que o queijo Canastra é um primo do queijo do Serro; ele é muito saboroso, mas quando vai ao fogo, ele não fica tão bom como o queijo do Serro.
O que o Sr. acha da cooperativa de produtores do Serro? E da Escola de Laticínios?
Eu acho que a cooperativa, de certa forma, é benéfica, mas, para levar para o Serro um retorno econômico, ela teria que ter a adesão de todos para formação de um capital grande, viabilizando uma indústria de queijos forte, uma SA (sociedade anônima), que pudesse publicar uma página na Veja dizendo O Queijo do Serro...., fazer mala direta e ter, aqui, no Rio e em São Paulo, distribuidores para um mercado refinado, num comércio orientado por publicidade correta, porque só se vende o produto se se fala ao público que ele existe e que seu consumo traz benefícios.
O que o Sr. acha do queijo do Serro pasteurizado?
Eu acho que a pasteurização do leite tira aquele sabor do queijo antigo. No momento em que o queijo se tornou industrial, em que o leite se tornou pasteurizado, o queijo do Serro se tornou um primo do queijo francês e inferior a ele.
Sr. acha o registro do queijo do Serro como bem cultural de Minas Gerais justo? É importante?
O queijo artesanal tradicional, que sobrevive há séculos, esse merece toda proteção.
A vigilância sanitária está querendo mudar o modo de produção do queijo em nome da saúde, o que o Sr. acha disso?
Dr. Antônio Tolentino, casado com minha irmã, que clinicou, em Serro, por mais de 30 anos, disse que nunca atendeu a um caso de qualquer moléstia que pudesse estar ligado à ingestão de queijo do Serro. O Zé Monteiro fala a mesma coisa. Parece que é uma lenda que diz que o queijo tem que ser pasteurizado.
Os EUA querem impor através da OMS a pasteurização para todos os tipos de queijo, e assim globalizar o mercado consumidor, o que o Sr. acha disso?
Nós podemos analisar isso de vários ângulos: pelo ângulo cultural, eu sou absolutamente contra essa regra, porque ela é prima irmã do que aconteceu na União Européia. A União Européia queria impor que os queijos, principalmente os franceses, tivessem de ser pasteurizados. Na medida em que eles fossem pasteurizados, eles perderiam aquelas características milenares que eles têm. Isso seria um desastre, talvez até chegando a uma inversão daquilo que eles querem. Objetivando uma excelência mercadológica, eles vão concorrer com outros queijos famosos pertencentes a empresas multinacionais. Não adianta querer concorrer com esses monstros. Eu acho que aceitar tais imposições é admitir o desaparecimento de um patrimônio histórico que vale culturalmente muito mais do que as divisas econômicas que sua uniformização possa gerar.
Do ponto de vista econômico, eu acho que, para beneficiar o Serro, é preciso colocar lá uma outra fábrica de queijo dentro dos moldes atuais, com foco nas peculiaridades regionais. Mesmo assim, acho que o nome Serro está ligado àquele queijo artesanal e não pode ser usado para outro. Se, por exemplo, a Nestlé abrir uma fábrica no Serro, na linha do que se vê em outros lugares, ela vai vender o produto dez vezes mais caro, e vai trazer a miséria para toda uma região que não pode concorrer com a fábrica e que só tem na pecuária e no leite a sua recompensa.
SOBRE A ENTREVISTA
Sr. Feiz mostrou-se mais um filho devoto do Serro. Desde o primeiro contato feito por telefone, ele revelou-se muito disposto a ajudar em qualquer coisa que pudesse beneficiar a cidade e os serranos.
Embora ele mesmo diga que não entende muito do queijo do Serro e que não sabia como poderia ajudar, sendo uma pessoa distante da cidade por tanto tempo, com sua cultura, boa memória, capacidade de relacionar fatos com sentimentos, fica claro que o Serro é mais do que uma lembrança viva para ele, o Serro é um pedaço da sua alma, e o queijo do Serro, que ainda hoje tem presença garantida em sua mesa, possibilita a ele um contato direto com sua própria história.