Entrevista - Maria Coeli Simões Pires - Projeto Aproxima
ENTREVISTA PARA O PROJETO APROXIMA
Idealizador do Projeto: Eduardo Maya
Entrevistadora: Jornalista Eulene Hemétrio
Entrevistada: Maria Coeli Simões Pires[1]
Tema: Queijo do Serro – Preparação para a Feirinha Aproxima (envolvendo a culinária Serrana) – 11/11/2017/Belo Horizonte
Data: 31 de outubro de 2017.
1- Eulene Hemétrio: Por que o queijo se tornou um ícone da cidade do Serro?
Maria Coeli : A tradição do queijo do Serro teve início há mais de dois séculos. A técnica queijeira, trazida para o Brasil, no século XVIII, por portugueses, foi adaptada ao ambiente das fazendas para dar suporte à promissora exploração de ouro na região. Com a queda do ciclo do ouro, a atividade agropecuária foi intensificada, e a produção do queijo passou então a garantir a base da economia no município e na região.
Com a abertura da Estrada que liga Serro a Belo Horizonte por Conceição de Mato Dentro, o queijo ganhou o mercado da capital e de outros Estados.
Como expressão síntese do Serro rural e tradicional “figurante” da mesa serrana, ele se enraizou no imaginário e na identidade da região serrana, de modo que, diante de ameaças representadas por campanhas sanitaristas cíclicas e verdadeiras estratégias de sua extinção, o queijo foi ardorosamente defendido como forte expressão cultural, resultando no reconhecimento da técnica queijeira serrana como bem imaterial da cultura do Estado e do Brasil. Um título que oficializa o seu valor como ícone da cultura, certamente um passaporte do produto do “terroir” do Serro para as mesas internacionais.
Precisamos romper ainda com algumas barreiras, de modo que possam ser compatibilizadas as medidas sanitárias com as expectativas de preservação das técnicas tradicionais.
2- Eulene Hemétrio: O que diferencia o queijo do Serro dos demais queijos de Minas
Maria Coeli : Não é simples a questão, que pode ser respondida segundo critérios variados, isto é, na perspectiva bioquímica, sensorial, cultural, entre outras.
Os queijos artesanais da tradição mineira são saborosos e de ótima qualidade, mas cada qual tem seu segredo.
Não é simples a tarefa de descrever as particularidades de uma iguaria, de um sabor. O mercado, de algum modo, responde a essa pergunta com a inegável valorização que atribui ao queijo do Serro. Diriam os especialistas que a identidade vem da maior umidade e da acidez muito característica.
Pessoalmente, destaco: o sabor peculiar, o aroma, a consistência da massa, o modo de reação quando é curado ou fundido, dentre outras peculiaridades.
O certo é que os fatores determinantes dessa especificidade são inúmeros e remetem ao que os franceses chamam de “terroir”. O terroir envolve condições climáticas e geológicas, mas também o “savoir faire”.
No caso do queijo do Serro, o “terroir” envolve, além das características da pastagem, do clima, do relevo, das peculiaridades do rebanho, o saber fazer, isto é, a técnica queijeira. Alguns atribuem a caracterização do queijo, sobretudo, à cultura láctea utilizada na sua elaboração, o famoso pingo.
3- Eulene Hemétrio: Existe algum movimento recente de aperfeiçoamento das técnicas?
Maria Coeli : Podemos dizer que o movimento recente de valorização da técnica queijeira inicia-se no contexto da crise de 2000 e ganha impulso e legitimidade incontestável a partir do reconhecimento do modo artesanal tradicional do queijo como patrimônio cultural do Estado e do Brasil, pelo IEPHA e pelo IPHAN, reitera-se, um verdadeiro passaporte para que o produto entrasse na pauta internacional.
Um trabalho de orientação por parte dos órgãos do Estado e das entidades dedicadas ao queijo foi responsável por uma evolução significativa no campo da atividade queijeira, o que reflete na agregação de valor ao queijo.
Como o queijo é objeto de varias pesquisas por parte da Universidade de Viçosa, da UFMG, de pesquisadores voluntários, de organismos ou iniciativas estrangeiras, fruto daquela estratégia mais ampla, há um clima propício à potencialização do produto por meio de técnicas de agregação de valor. Há uma importante agenda envolvendo a colaboração francesa ao Projeto de Valorização do Queijo Artesanal do Serro.
Adverte-se, contudo, para a importância de não se perder de vista a verdadeira tradição serrana, sob pena de sacrifício do verdadeiro elemento da identidade que abriu as portas da culinária internacional para o Serro.
4- Eulene Hemétrio: Existe algum cadastro destes produtores? É possível saber quantos?
Maria Coeli : O Serro conta com três instituições muito ligadas ao segmento queijeiro: a Cooperativa dos Produtores Rurais do Serro; a Associação dos Produtores Artesanais de Queijo do Serro; e o Sindicato dos Produtores Rurais.
Estas instituições mantêm cadastros de seus associados e desenvolvem um importante trabalho de articulação do setor, que não envolve apenas o município do Serro, mas toda uma região, a chamada Região Geográfica do Queijo Minas Artesanal do Serro.
Em 2011, o queijo do Serro recebeu o registro de indicação geográfica, garantido pela Lei n. 9.279/96, assegurando aos produtores da região o direito exclusivo de identificá-lo pela localidade. Não disponho de informações sobre o andamento desses processos de identificação dos queijos da região geográfica. A Emater e o IMA têm atuação nesse setor.
5- Eulene Hemétrio: Além do queijo, quais são as outras referências culinárias da cidade?
Maria Coeli : O queijo é, certamente, o carro chefe, uma vez que, além de consumido “in natura”, está presente na maioria das receitas serranas. Ele entra sem cerimônia em qualquer prato, doce ou salgado.
Embora pouco citadas, destaco as saborosas quitandas do Serro. Famosas quitandeiras produzem biscoito de polvilho, rosquinhas de leite, roscas da rainha, bolachas, broas de fubá, sequilhos variados, quitandas que, acompanhadas de um bom queijo, café de rapadura e um queimadinho, fazem a melhor mesa de café da manhã.
Pratos tradicionais do antigo ajantarado de domingo do Serro, hoje mais raros em razão do novo hábito de alimentação em restaurante, eram preciosos: tutu temperado com cachaça e com farta guarnição; arroz de forno; macarronada seca com queijo curado; frango assado; lombo ou pernil de porco com batata palha feita em casa e outras delícias.
As comidas acompanhadas de angu e couve são outra tentação na cidade: frango com quiabo, costelinha com “ora pro nobis”, frango ao molho pardo e um trivial, sempre cheiroso.
Os doces caseiros estavam em todas as casas, quase sempre feitos com frutas do quintal. Os hábitos vão mudando, mas muitas famílias resistem às soluções artificializadas e continuam fazendo doce de mamão, doce de figo, doce de laranja, etc.
6- Eulene Hemétrio: Qual a relevância do queijo para a gastronomia brasileira?
Maria Coeli : A família serrana, de modo geral, reúne-se em torno da mesa, preferencialmente na cozinha, para celebrar qualquer motivo ou, simplesmente, para jogar conversa fora.
Na simplicidade de cada ambiente familiar, os segredos da cozinha são compartilhados de geração para geração.
O Serro como cidade tricentenária, com fortes influências do Brasil Colonial e do Brasil Império, com tradição de famílias numerosas e fiéis às suas raízes, não só preserva seus modos de fazer e a intimidade da cozinha, como também contribui para a valorização da culinária e para a disseminação do conhecimento nesse campo, especialmente por meio de empreendedores emblemáticos, como Dona Lucinha, assim como por meio de trabalhos de pesquisa e iniciativas que transcendem o interesse local da culinária serrana.
O queijo do Serro, assim designado o queijo da região geográfica do Serro, que envolve cerca de dez municípios produtores, tem grande relevância nesse campo.
Trata-se de um produto tipicamente artesanal, com forte identidade, apreciado por diversos “Chefes de Cuisine” e “Gourmets”.
O queijo do Serro é associado à ideia de “haute cuisine”, artes culinárias, e evoca uma ideia cultural. É de alta qualidade e está reservado aos paladares mais exigentes e a experiências gastronômicas mais elaboradas.
7- Eulene Hemétrio: Qual a importância de movimentos que valorizem a gastronomia
Maria Coeli : A renovação ou valorização da gastronomia é fragmento de um movimento pós-moderno contextual de apropriação e de ressignificação da cultura e dos traços de identidade cultural a partir dela. A culinária, como expressão cultural, é um relevante indicador simbólico da memória coletiva. Especialmente a valorização da gastronomia mineira busca a ressignificação da cozinha montanhesa na identidade da mineiridade.
A tendência de renovação é muito positiva e tem promovido releituras acerca do modus faciendi da cozinha mineira, com estímulo ao resgate da arte e à utilização de novas técnicas culinárias, mesclando refinamento, sofisticação e elegância, exibidos, por festivais gastronômicos como o de Tiradentes, o Madrid Fusion, um dos maiores do mundo, ou em feiras como a do Livro em Frankfurt, com o Cozinhando com Palavras, destacando livros de produção de conhecimento em diferentes linguagens sobre a culinária. Destaco que no festival gastronômico espanhol, vários foram os chefes mineiros que destacaram a criatividade da culinária de Minas; igualmente a Feira Alemã prestigiou a culinária mineira, sobretudo o queijo artesanal.
O filme o mineiro e o queijo de Helvécio Raton segue na mesma linha de valorização.
Registra-se a importante estratégia do Estado de Minas Gerais de valorização dos movimentos em torno da culinária como patrimônio imaterial da cultura, empreendida com sucesso no Governo Anastasia.
Fontes:
PIRES, Maria Coeli Simões. Memória e arte do queijo do serro: o saber sobre a mesa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
___________________. Outros registros e entrevistas pessoais.
[1]Maria Coeli é serrana, advogada, mestre e doutora em Direito, tendo desenvolvido sua dissertação de Mestrado na área de Patrimônio Cultural, sendo sócia fundadora da Associação de Amigos do Serro – AASER, instituição responsável pela propositura do registro da técnica queijeira artesanal ao então Secretário de Estado da Cultura Ângelo Oswaldo. Atualmente é Presidente da Academia Serrana de Letras, entidade em fase de implantação.