O ofício do queijeiro (1)

Maria Coeli Simões Pires
MEMÓRIA E ARTE DO QUEIJO DO SERRO: O SABER SOBRE A MESA

Adaptação do texto produzido pela autora


Heródoto e Hipócrates mostraram que, entre os escitas ou citas – povos iranianos que habitaram na Antiguidade a região de Cítia (Eurásia) incluindo áreas nos atuais Cazaquistão, Azerbaijão, sul de Ucrânia e da Rússia, e que formavam tribos nômades de pastores equestres–, existiam pessoas que se dedicavam à fabricação de queijos como um ofício. Esses povos foram mencionados pela primeira vez nos anais assírios, como vindos do norte por volta de 700 a.C. Comenta-se que essas tribos não concebiam a vida sem os cavalos; por isso, era a partir do leite das éguas que eles obtinham o queijo. O leite equino era armazenado em recipiente de madeira, no qual ficava em repouso até que a parte sólida se sedimentasse no fundo, enquanto a líquida mantinha-se na superfície. Os primeiros queijeiros de que se tem registro na história são, portanto, os escitas. (VOLPATO, 1985, p.9).


Na Idade Média, o ofício passa a abranger não só a fabricação do queijo, mas também sua comercialização. Em Verona, eram chamados garanjeiros, em Milão, eram queijeiros e, em Roma, tenderos. Todos haviam herdado a "arte dos aceiteiros" e obedeciam ao "Estatuto da arte dos aceiteiros, queijeiros, sazonadores, pienseros, tenderos e daqueles que vendem carne seca ou fresca", elaborado na primeira metade do século XIV em Florença. O ingresso na "arte" do queijo dependia de cuidadoso ritual, que incluía preparação de aprendizes e candidatos a queijeiros e aprovação em exame próprio, no qual deviam demonstrar domínio do conhecimento sobre processos de elaboração, tipos de queijos e outras regras e particularidades do ofício. O comércio de queijos era objeto de proteção especial. As grandes compras do produto eram sazonais, ocorrendo em quatro épocas do ano e tendo cada período um santo protetor: Santo Antônio em janeiro e junho, São Jorge em abril, e São Miguel em setembro. (VOLPATO, 1985, p. 19)


Até hoje, de acordo com a tradição europeia, os queijeiros gozam da proteção de vários santos, dependendo da região onde exercem a profissão: São Mammaso (San Mama), na cidade de Scaligna, São Lúcio de Coira, em Meneghina, e Santa Maria do Orto, em Roma.(VOLPATO,1985, p.20)


O ofício está ligado a um forte sentimento de religiosidade, sendo que, já na Roma antiga, o leite, assim como o vinho, era espargido ao fogo de lareira, durante as refeições, como oferenda às divindades para obter sua proteção. 


Expressão da religiosidade e do poder dos queijeiros na Europa, em especial em Roma, eram as igrejas próprias, sendo interessante lembrar a pintura feita pela confraria dos queijeiros na igreja de São Bernardo, em Milão.[2]  


O ofício de queijeiro no Brasil e em Minas existe desde os tempos coloniais. Não há, contudo, registros para avaliação de sua evolução, de sua importância no quadro da mão de obra rural, dos padrões remuneratórios da atividade, das relações de trabalho e das questões de gênero e faixa etária para o exercício da profissão. A memória oral, todavia, permite a inferência de algumas características e condições de trabalho que podem ajudar na definição do perfil do profissional desse ofício, em ambiente mais próximo.


É consenso entre os mais afeiçoados ao tema da produção artesanal de queijos no Serro que o ofício é sempre atribuído a um profissional de perfil especial, basicamente marcado pelos atributos de higiene, paciência, pontualidade, organização, constância, confiabilidade, atenção e meticulosidade, geralmente homem, com idade entre 21 a 55 anos, podendo ser considerado um ofício da maturidade. Além disso, não é própria a rotatividade de mão de obra queijeira; ao contrário, o queijeiro normalmente faz história na fazenda, dividindo por longos anos com o fazendeiro os segredos do queijo.


O ofício é tipicamente masculino; em raríssimas situações é executado por mulheres. Isso ocorre, por exemplo, quando a viúva assume a direção da fazenda e deseja manter controle sobre a atividade queijeira, ou quando, em pequena gleba rural em que há uma produção caseira de queijos, os afazeres rurais são divididos com a mulher. Está, assim, mais ligado ao curral que à cozinha.

 

“As principais habilidades de um bom queijeiro são as de paciência na lida com os insumos do queijo, de cuidados enfadonhos na manipulação da massa, de meticulosa medição dos ingredientes, persistência e delicadeza na capacidade de percepção de reações mínimas do conjunto de microorganismos presentes no queijo. Outras habilidades importantes são pontualidade calculada pela altura do sol, cuidados de higienização pessoal e da queijaria, capacidade de solidão para proceder ao ritual quase em retiro, de senso estético para a garantia da plasticidade do produto, vocação para o ofício, o que faz com que o queijeiro faça de cada queijo uma peça de arte, sempre igual e diferente.” [3]

 

As tarefas são desenvolvidas em ambiente organizado, bem limpo, projetado exclusivamente para a finalidade, tranquilo, protegido contra a entrada de estranhos, arejado, mas normalmente úmido pela presença da salmoura. Em geral, os trabalhos são realizados de pé, sendo constante para o queijeiro a posição semicurvada do tronco ao lado da banca ou mesa de drenagem do soro. Movimentos para a retirada de massa do tambor, a distribuição nas formas, a coleta de água para lavar os queijos ao final da espremedura e a transposição de queijos da banca de drenagem para as prateleiras de cura quebram a rotina e exigem leves esforços e curvaturas mais acentuadas, sendo que a ralação demanda postura semelhante à destinada à espremedura dos queijos.
 

A indumentária usada é bastante singela: roupa comum bem limpa, avental, proteção para os cabelos e botas plásticas.


O ofício exige nível básico de conhecimento que permita ao queijeiro proceder a cálculos elementares de proporção de misturas, leitura de recomendações simples e, sobretudo, capacidade de observação para detectar qualquer alteração do produto, qualquer fermentação anormal ou estufamento do queijo, já que a mais discreta mudança de volume e textura, de tamanho das olhaduras e mesmo de arremate das aberturas mecânicas do produto é indicativa de problema com o rebanho, nas instalações, na água de serventia, nos insumos ou na manipulação.


A maior parte das tarefas requer paciência do profissional para a monotonia dos gestos, capacidade de trabalhar solitariamente e, sobretudo, arte e calor das mãos, na manipulação da massa, na espremedura e nas demais fases de elaboração e tratamento do produto. Trata-se de ofício qualificado, que, desenvolvido com os cuidados necessários, comunica status ao profissional. O fazendeiro e a fazenda têm seu prestígio definido, muitas vezes, em razão da qualidade do queijo produzido. 


O queijeiro relaciona-se normalmente com os profissionais de outros ofícios: diretamente com o vaqueiro – é comum a acumulação dos ofícios de queijeiro e de vaqueiro –, quese ocupa do manejo do gado, e com o tropeiro, que transporta queijos e outros produtos rurais, e, indiretamente, com todos os demais que lidam na lavoura, no engenho e nas outras atividades da fazenda.


Especialmente os que laboram no curral e nas queijarias das fazendas desenvolvem habilidades gestuais importantes: há gestos próprios para controlar o animal de montaria que conduz o boiadeiro; há segredos da expressão corporal para tanger o gado rumo ao curral e de volta às mangas; há habilidades especiais para fazer apartação de lotes de reses, para chamar o gado ao cocho pela ordem de preferência e para apaziguar a fêmea na proteção de sua cria.


Como em todo ofício, recursos materiais, emocionais e cognitivos, além de outras formas de saber, concorrem para o desempenho do vaqueiro e do queijeiro: técnica, método, conhecimento, habilidade, desejo e necessidade materializam-se em objetos, ferramentas, utensílios, equipamentos e produtos da arte e do ofício. Limites muito difusos apartam a arte queijeira do labor, e o ofício revela-se sensivelmente como arte.


Embora a queijaria seja um espaço de solitude, a fazenda é, no seu conjunto, um grande espaço de compartilhamento; os terreiros, as varandas, as bicas d’água, os caminhos da fonte, a cozinha, as acomodações dos criados, o local da moagem de cana e da alambicagem, os eitos de batedores, as roças das plantações de milho e feijão, os brejos de arrozal são lugares de convivência dos camaradas, dos carreiros, dos tropeiros, dos lavradores, das cozinheiras, das quitandeiras, das piladeiras e de tantos outros atores do mundo das fazendas.


Nas fazendas tradicionais, o trabalhador rural, inserido num dado modo de produção, é um ser coletivo, ainda que não tenha plena consciência de suas condições de vida e de seu lugar social e não compreenda a trama dos constrangimentos sociais e econômicos que envolvem o seu ofício. Assim, como os artesãos da Idade Média, os escravos das senzalas, os trabalhadores das oficinas e das minas, os trabalhadores da fazenda identificam-se e vivem em cumplicidade.


No âmbito rural, os sentimentos se mesclam, materializados nos utensílios do fazer. O pilão fala do sofrimento e do prazer, da persistência ou do desespero, da raiva e da amenidade, da segurança e do desequilíbrio, da ansiedade e da paciência de quem, no molejo da pilação, arriba e desce a mão de pilão, batendo e remoendo a sua própria existência.


A forma oitavada fala da simetria, da monotonia, da resistência da madeira que, anos a fio, serve ao ofício com a garantia da forma. A queijaria, no silêncio do fazer solitário, é espaço de consciência e alienação e tem a própria dimensão humana.


E basta deter-se silenciosamente diante dos objetos e das peças simbólicas dos diversos ofícios rurais, impregnados de dor e prazer, para que se possa avaliar o gênero de vida daqueles que deles fizeram uso e ainda o daqueles que testemunharam a lida que os envolveu.


E assim, nesse processo de auscultade valores e sentimentos do Serro Rural, é possível identificar elementos que transcendem a materialidade, como os hábitos, os ritmos, as crenças, as clivagens sociais e as dimensões humanísticas das relações de produção.

 


[1] Este texto, com ligeiras alterações, corresponde a parte do trabalho preparado por Maria Coeli Simões Pires para o Museu de Artes e Ofícios – MAO, Belo Horizonte, 2003.

[2]BATTISTOTTI, Bruno; BOTTAZZI, Vittorio; PICCINARDI, Antonio; VOLPATO, Giancarlo. Quesos Del Mundo. Ed. Elfos. Barcelona, 1985.

[3] Conversa entre os irmãos Jorge, Guilherme e Maria Coeli Simões Pires sobre ensinamentos do pai, Pedro Simões Neves, antigo fazendeiro e produtor de queijo artesanal. Serro, 2001.

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