Queijo e Poesia

QUEIJO DO SERRO

Com a decadência do ciclo do ouro e do diamante,
com a queda da cana-de-açúcar,
o Serro se louva na vocação de paneleiro
e depois se descobre inteiro
Serro queijeiro.

Mas, enquanto levado em lombo de burro,
em jacas de taquara,
em bruacas de couro
ou em caixote de madeira,
o queijo do Serro não ganhou fama.
Sua glória cresce
com a aventura dos caminhoneiros.

É a partir da década de trinta,
com os grandes pioneiros,
que o queijo vai ganhando o mercado
pela estrada que liga à Capital,
passando pela Serra do Cipó.

Vai consagrando uma história nova.
Vai conquistando divisas
de atoleiro a atoleiro
de anedotas a aventuras.
Esse queijo tem mil segredos,
é uma história de variados enredos,
que eu vou logo revelando:
o gado leiteiro há de comer capim de lá
há de sobreviver nas agruras do Jequitinhonha.

É preciso cuidado na escolha do camarada
há de se respeitar o horário da ordenha
há de ser especial a água da serventia.
O quarto de queijo deve ser asseado todo dia;
é preciso por atenção
na lavagem da banca e do latão.
Há de ter pano de saco para coar as impurezas
formas de madeira oitavadas e bem curtidas,
prateleira bem limpinha para curagem.
O coalho há de ser o mais aprovado.
Depois, não se pode esquecer
o balde, preso na biquinha da banca,
colhendo, desde a véspera,
o pingo de cada dia.
Há sempre de ter lugar no primeiro corte da massa
Para uma cruz com a pá de madeira.


É preciso ainda levar jeito para espremer:
polegares bem aparelhados,
mão bem juntinhas e macias
suaves, firmes e pacientes
rodando sempre a forma
pra direita, pra direita, pra direita.
Logo, logo, tem a vira da forma
e a esmigalhadura da massa,
para a nova espremedura.
E não se pode esquecer a dosagem do sal
em pedrinhas, espalhado por igual.
Depois, não pode faltar o ralinho de tampa de lata
furada a prego em orifícios bem uniformes
para alisar os outros já firmes.

Enquanto isso, na fresca da tarde
tem-se de virar o frescal
para nova dose de sal.

Há muita gente que faz queijo perfeito.
A tradição vem de Zeca Toquinho,
dos Mesquitas, dos Furlettis, dos Moura Nunes,
dos Nunes e Silva, dos Pereiras da Cunha,
dos Fonsecas, dos Vasconcelos e de tantos outros.

O dos Pires era famoso.
No meu tempo, o da Sesmaria,
ou da “Maria Nunes”, era sem igual ...
Ainda hoje muitos fazem um queijo especial,
melhor, ainda, se a gente consegue frescal.

PIRES, Maria Coeli Simões. Serro. Poesia. Belo Horizonte: Mazza, 1990, p. 71 - 73.

 


BISCOITO DE GOMA

Na hora da merenda
não quero torta nem “water”.
Quero café bem fraco,
passado na hora,
com biscoito de goma
na boca de forno,
bem murcho e quentinho,
ou na peneira de taquara
sobre a mesa da cozinha.

Se já não tiver mais forno de barro,
nem queijo curado,
nem coalhada,
nem manteiga de soro meio ardida,
nem banha de barriga de porco,
nem uma pitada de erva-doce,
nem o polvilho de Zé Ventura,
vendido em sacos alvejados,
encomende biscoitos torradinhos
à Taninha
à D. Maria
ou a outra quitandeira
que Beltrana vai chegar.

Se possível, recomende o tempero
de Dindinha.

PIRES, Maria Coeli Simões. Serro. Poesia. Belo Horizonte: Mazza, 1990, p. 74.


EMPADÃO DA TIA HAYDÊE

Numa gamela seca de madeira bem curada,
peneira-se um quilo ou mais de farinha de trigo
com uma colher de pó “royal”,
acrescentam-se duzentos gramas de manteiga de soro,
cem gramas de banha de barriga de porco,
uma colherinha de sal e
seis gemas de ovos bem vermelhos.
Amassa-se levemente até a mistura
ficar uniforme;
deixa-se descansar.

Enquanto isso, prepara-se o recheio:
toma-se uma panela de pedra,
coloca-se nela gordura,
três dentes de alho picados;
juntam-se dois frangos desfiados,
uma chícara de ervilha colhida na horta,
uma chávena de creme de leite da roça,
duas cebolas roxas cortadas,
um molho de cebolinha verde,
duas folhinhas de quitoco,
duas pimentas moídas,
dois galhos de salsa,
meio pimentão em tirinhas,
um prato de milho cozido
apanhado na roça de Pedro de Diolino,
cubinhos de cenoura vermelha,
seis ovos cozidos repicados,
um copo de grelo de bambu
um pires de picadinhos de conserva curtida em água fraca,
tomates e tomatinhos azedos,
sem sementes.
Deixa-se tudo ir cozinhando
com o suor apenas.
Abre-se a massa
num tabuleiro bem grande,
salpica-se queijo
curado ralado.
Arranja-se o recheio,
cobre-se com massa fina e faz-se uma gradinha
de tiras cortadas com a carretilha.
Pincela-se com duas gemas
misturadas em um pouco de café.
Salpica-se queijo ralado
por cima e leva-se ao forno brando.
Para testar o forno,
jogue no centro um pedaço de folha de bananeira.
Se ela se enrolar lentamente,
o ponto está ótimo.
Depois de assado, leve à mesa para vinte pessoas,
e estará tudo acabado em menos de vinte minutos.

PIRES, Maria Coeli Simões. Serro. Poesia. Belo Horizonte: Mazza, 1990, p. 75 - 76.

 

FUBÁ SUADO

Inhá Papuda fazia suado como ninguém.
Fogão de lenha, panela de pedra,
fubá de moinho d’água,
rapadura, queijo curado,
pitada de sal,
canela, manteiga,
banana em fatias
e aquele jeito meticuloso de atiçar o fogo,
de escorrer o suor o texto,
de limpar a chapa na mania de capricho,
de encalcar o fubá molhado na panela
e bater seguidamente a colher para ouvir o zunido
parecendo barriga inchada.

Ele ia cozinhando apenas com o suor
enquanto Inhá debulhava
sozinha o palavrório
mais cansativo e monótono
de sua solidão.

Era o tira-jejum daquelas manhãs frescas
da chácara que a gente temperava com o café
com leite quente, servido em canecos de ágata.
Biscoito, rosquinha, pão sovado e bolo
eram outra coisa, podiam se merenda,
nunca o tira-jejum.
Não sei de Inhá.
Ando jejuna do meu suado,
comendo o pão de cada dia,
que me traz azia e saudade
daquele tempo.

PIRES, Maria Coeli Simões. Serro. Poesia. Belo Horizonte: Mazza, 1990, p. 77.


DIA DE CONSOADA

Na véspera a mãe nos avisava
de que o dia seguinte seria de jejum,
mas que à tarde teríamos a cansoada.

Levantávamos cedo,
fazíamos cruz na boca,
oferecíamos a Deus o sacrifício.

O movimento da cozinha começava desde logo.
Espiávamos de olhar comprido
o preparo do ajantarado.
A mesa da cozinha ia se enchendo
até transbordar a boca da criançada de saliva.

Esperávamos meio aguados a hora de limpar as travessas:
a macarronada com sardinha, queijo e ovos cozidos,
uma bacalhoada com um cheiro bem suspeito,
o arroz mulatinho bem rosado,
o tutu de feijão preto,
uns bolinhos de bacalhau,
e a mistura era completa.

A sobremesa, desde a primeira hora,
já estava sobre a mesa:
batata-doce cozida,
mandioca bem enxuta,
cará com melado,
bolo de fubá,
arroz-doce com canela,
rosca da rainha,
garapa fresca.

Distribuídos nos bancos,
limpávamos a mesa,
comíamos até nos fartar.
O bicarbonato vinha por último
e não era sinal de pecado.

PIRES, Maria Coeli Simões. Serro. Poesia. Belo Horizonte: Mazza, 1990, p. 78 - 79.


CUSCUZ

Faz um frio insistente
como nos dias de cuscuz na fazenda.
Mas a gente abre as mãos sobre as labaredas do fogão
e elas não aquecem mais:
fumaça
espessa
sufocante,
o milho espalhado sobre o aterro
não faz mais festa:
pipocas no borralho jamais.

A gente tenta comer cuscuz novamente,
vai ao moinho de pedra
buscar fubá da proa,
a roda d’água está seca e parada;
procura na despensa
a gamela de madeira.
No gaveteiro do guarda-comida
só a receita está guardada.
Ponha numa gamela:
dois quilos de fubá do olho,
de milho escolhido,
passado em moinho de pedra
e peneira de taquara,
um prato de massa de mandioca amarela ralada,
um quarto de rapadura raspada,
uma pitada de erva-doce,
meio litro de soro da vira.
Sove, esfregue ...

Depois, misture, levemente,
um queijinho de rala fresca
e um quarto de queijo curado, cortado em cubinhos.

Toma-se aquele cuscuzeiro de pedra,
comprado do Antônio Cunha ou
de Zé de Juca Cândido,
unta-se e besunta-se de manteiga,
cruzam-se tiras de palhas de milho.
Enche-se com a massa.
Fecha-se com tampa – texto pesado.
Apóia-se o cuscuzeiro
sobre uma panela cheia d’água com casca de canela:
vedam-se as gretinhas para o vapor não escapar.
Berre, fogo!
Quanto mais lhe chega calor,
mais sobe o vapor.
Enquanto cozinha lentamente ,
acrescentam-se pedacinhos de manteiga,
e então arruma-se a mesa:
uma toalha xadrez vermelha, azul e branca
doze pratos
Coloca-se um bule grande azul
com motivo floral cheio de café fraco passado na hora.
Coloca-se um caldeirão de leite gordo com chocolate.
Busca-se no quarto de queijo uma forma de frescal.
Por último, vai o cuscuz numa boleira grande,
coberto com farinha de coco
e bem quente.
Jogam-se mais sabugos no fogão e
de quando em vez se atiça o fogo
para manter quentinha a cozinha.

PIRES, Maria Coeli Simões. Serro. Poesia. Belo Horizonte: Mazza, 1990, p. 80 - 81.


RECEITA DE REQUEIJÃO

Despeje, numa tina, dezesseis litros de leite,
de preferência de vaca com bezerro novo,
jogue dentro meio copo de água morna,
cubra com um pano de saco bem branco,
deixe em lugar mais quente e
espere talhar até azedar.

Depois recolha a nata cremosa
numa terrina verde de louça antiga,
separe a massa numa peneira de taquara
e lave com leite fervente.

Numa caçarola grande de ferro,
ponha a nata cremosa e deixe-a fritar
até formar uma borra tostada,
junte uma colherinha de açúcar,
outra de sal e um pouco de manteiga,
ponha a massa ainda farinhenta
e vá mexendo com uma colher de pau
até formar um bolo liguento,
vá pingando leite aos poucos.

Apanhe uma folha de bananeira
no fundo do quintal;
forre com ela uma forma de madeira
para queijo.

Enquanto isso, deixe as crianças
enrolarem a puxa de requeijão na colher
sem medo de caganeira
porque foi sempre assim
e ninguém morreu por causa disso.

Revire na forma:
deixe as crianças rasparem
a caçarola.

No dia seguinte, leve à
mesa em queijeira de madeira
com biscoito de goma,
broa de panela,
queimadinho com chocolate,
rosquinha de amoníaco,
pão caseiro e
café de rapadura.

Recomende comer fatias finas.

PIRES, Maria Coeli Simões. Serro. Poesia. Belo Horizonte: Mazza, 1990, p. 82 - 83.


O QUEIJO DO SERRO PELAS TRILHAS DO TEMPO

Autor: Jorge Brandão Simões


No tempo do Brasil colonial,

O Serro era apenas um arraial.

Seu destino foi, então, traçado pelo sistema imperial.

Hoje, ainda há nele vestígios da influência real.

Nas terras férteis, instalaram-se os fazendeiros.

Nos currais, o pé de boi era o vaqueiro.

Para enfrentar as estradas, vieram os tropeiros.

E para guardar a tradição, apareceu o queijeiro.

A descoberta do Brasil se deve a Cabral.

A receita queijeira veio de Portugal.

O queijo tem valor comercial, mas é identidade cultural.

Em Minas Gerais, é reconhecido como Patrimônio Material.

Nosso queijo tem a bênção do imperador.

Tem legislação de chancela do Itamar Franco governador.

No registro do IPHAN, tem saber de leigo e de doutor.

Vamos preservar a tradição, que o bem é de valor.

Fazer queijo tem algum segredo:

A lida do curral começa cedo;

A saúde do gado mostra-se no pelo;

Leite de boa qualidade é o primeiro apelo.

Na queijaria, não entra curioso.

Qualquer detalhe é precioso.

O processo segue um círculo vicioso.

Na banca de madeira, o queijo é mais gostoso

Não se faz queijo por dinheiro, mas por feitiço de fazendeiro.

É preciso estar de bem com a vida e dedicar-se por inteiro.

Por isso, o produto dá identidade ao povo mineiro.

E hoje, é falado no Brasil e no mundo inteiro.

O queijo chegou no fundo do poço.

A situação parecia angu de caroço.

Fizemos movimento sério e alvoroço

Por fim, comemoramos até com almoço.

O tradicional produtor tem reza forte.

Queijo do Serro tem fama de sul a norte.

Na crise, muitos foram pra fora tentar a sorte.

Mas esquecer do queijo, só depois da morte.

A pauta do queijo é tema de amor e paixão.

Em torno dela, fizemos movimento de união.

Em 2003, criamos nossa associação.

Com dedicação esforço, ela ganhou evolução.

Chegamos a caminhar sem destino.

Muitos obstáculos encontramos no caminho.

Batemos na porta do IMA e encontramos doutor Altino.

Unidos (instituições e produtores), fizemos para o queijo um novo ninho.

Fizemos encontros em vários lugares.

Chegamos a atravessar os mares.

Nas repartições públicas, visitamos todos os andares,

Sem agenda, sem marcação e atos protocolares.

Passos firmes, que longa era nossa estrada.

Hoje, podemos dizer: temos páginas viradas.

Em dias tensos, olhos e ouvidos atentos orientavam nas encruzilhadas.

Superamos dificuldades, que ficaram nos pontos de parada.

Rica é a história do Queijo do Serro,

Que não se escreve por acaso e nem por erro.

Da mineração, é a compensação dos desaterros.

Seus utensílios testemunham a trama em singelo acervo.

Personagem de várias histórias e refrão de cantoria,

Alimento sagrado de nossas iguarias,

Queijo- queijo de nosso dia-a-dia.

Nessa história tem João, Pedro, Jorge e Marias.

O queijo curado faz honras à Nobreza.

O soro e a rala repartem-se na redondeza.

O frescal, na mesa, faz a gentileza aos visitantes.

O cargueiro do tempo segue trilhas desafiantes.

Do Serro, o produto autêntico é o Queijo.

Quem o experimenta não esquece, como o primeiro beijo.

Segredo indecifrável desse lugarejo.

Para as gestantes, serve até para matar desejo.

 Partir o queijo na mesa é tradição.

Representa mais que um aperto de mão.

O queijo é símbolo e bandeira da nação.

É cultura que segue de geração em geração.

O Serro já perdeu muita riqueza.

Ameaçado, o queijo pediu defesa.

Sobrevivente, a crise ele venceu.

Renascido, quer consagração em museu.


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